15 Julho 2020
O objetivo planetário de erradicar a pobreza em 2030 se dilui entre as garras da pandemia que arrastará 250 milhões de pessoas à beira da inanição. No entanto, as causas do não cumprimento deste objetivo essencial dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável não se limitam ao impacto sanitário da Covid-19. Ao contrário, devem ser buscadas nos mecanismos internos próprios de um sistema oxidado pela desigualdade.
A reportagem é de Sergio Ferrari, publicada por Rebelión, 14-07-2020. A tradução é do Cepat.
Constatação que não surge - neste caso - da crítica altermundialista. Mas que condensa as conclusões centrais de um novo relatório da Organização das Nações Unidas que acaba de ser apresentado na primeira semana de julho, em Genebra, pelo especialista belga Olivier De Schutter, relator especial da ONU sobre extrema pobreza e direitos humanos.
“O péssimo histórico da comunidade internacional em relação à luta contra a pobreza, a desigualdade e o desprezo pela vida humana precedem em grande medida essa pandemia”, enfatiza o especialista.
O documento antecipa que a mesma arrastará 176 milhões de pessoas a mais para a extrema pobreza, agravando a situação já dramática de pessoas de baixa renda, entre as quais se encontram, fundamentalmente, mulheres, trabalhadores migrantes e refugiados e os requerentes de asilo.
“Muitos líderes mundiais, economistas e especialistas promoveram com entusiasmo uma mensagem de autocomplacência, proclamando que o progresso contra a pobreza é uma das maiores realizações humanas de nosso tempo”, diz o documento da Organização das Nações Unidas. No entanto, "a realidade é que bilhões de pessoas enfrentam poucas oportunidades, inúmeras indignidades, fome desnecessária e morte evitável e não gozam de seus direitos humanos básicos".
"Em muitos casos, os benefícios prometidos pelo crescimento não se materializam e não são compartilhados”, enfatiza. E desnuda o mecanismo de polarização social planetária: "a economia mundial dobrou desde o final da Guerra Fria, e ainda assim metade do mundo vive com menos de 5,50 dólares por dia, principalmente porque os benefícios do crescimento foram em grande medida para os mais os mais ricos".
Segundo estatísticas oficiais de organizações internacionais, entre 1990 e 2015, se teria conseguido reduzir o número de pessoas pobres de 1,9 bilhão para 736 milhões. No entanto, de acordo com o relatório da ONU, esse número se baseia em uma medida "insatisfatória" da pobreza aplicada pelo Banco Mundial, que estabelece seu piso em 1,90 dólares por dia. Se a barra de análise fosse fixada em 2,50 dólares por dia, nos últimos 25 anos, quase não foram percebidas melhorias. Inclusive, se comprovaria um agravamento da situação de pelo menos 140 milhões de pessoas que vivem especialmente na África Subsaariana e no Oriente Médio.
O documento - por enquanto apenas em uma versão preliminar em inglês - foi elaborado pelo professor australiano Philip Alston, que até abril deste ano era o relator da ONU sobre esse assunto e que sintetiza seu conteúdo de 20 páginas em três conclusões principais.
É preciso parar de apostar no crescimento econômico como um meio para reduzir a pobreza e nos concentrar, acima de tudo, na redução da desigualdade e na redistribuição da riqueza. Em segundo lugar, a filantropia não pode substituir o papel protetor essencial que os governos devem desempenhar. Adicionalmente, propõe implementar uma justiça tributária mais eficaz, aprofundar a democracia e adotar uma governança participativa.
Quase em paralelo à apresentação no 44º período do Conselho de Direitos Humanos do relatório de Philip Alston, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL) se pronunciou sobre um dos temas centrais do relatório sobre a pobreza.
“A evasão fiscal na América Latina é um obstáculo para a recuperação da crise do coronavírus”, destaca a agência ao apresentar, em 6 de julho, seu Panorama Fiscal.
Arrecadar mais fundos para mitigar o impacto econômico e social criado pela Covid-19 - em vez de um maior endividamento - é a fórmula prescrita pelos especialistas em economia da ONU para a América Latina e o Caribe. Região onde somente em 2018 a não conformidade tributária - denominada evasão fiscal - representou 325 bilhões de dólares, montante equivalente a 6,1% do Produto Interno Bruto da região.
A evasão do imposto sobre a renda das empresas, ou seja, o que as grandes empresas deveriam pagar, na região latino-americana, é especialmente aguda, destaca a CEPAL. Que conclui que os sistemas tributários que têm um impacto significativo no PIB, em alguns casos mais de 5%, em alguns países, devido à evasão, geram menos da metade do que deveriam arrecadar.
Essa evasão fiscal empresarial constitui uma “das principais barreiras” para uma maior mobilização de recursos internos na região. Uma parte significativa dos recursos alocados pelos Estados na situação de emergência pandêmica poderia ser coberta pelo pagamento correto dos impostos empresariais. Evitando, assim, um aumento do endividamento interno.
“A pobreza não é apenas uma questão de baixa renda”, afirmou Olivier De Schutter, no Conselho de Direitos Humanos de Genebra, na terça-feira, 7 de julho. “É uma questão de desempoderamento, de abuso institucional e social, e de discriminação. É o preço que pagamos pelas empresas que excluem as pessoas cujas contribuições não são reconhecidas. Erradicar a pobreza significa construir sociedades inclusivas que passem de um enfoque da caridade para um enfoque do empoderamento baseado nos direitos”. E pediu a formação de um Fundo de Proteção Social para que os países assegurem garantias básicas de seguridade social aos setores mais pobres de sua população.
O mundo precisa de novas estratégias, uma autêntica mobilização, potencialização e responsabilidade "para evitar o sonambulismo em direção ao fracasso garantido, enquanto se produzem intermináveis relatórios insípidos”, enfatiza o relatório do Relator Especial da ONU sobre extrema pobreza e direitos humanos.
A justiça tributária é essencial para garantir que os governos disponham do dinheiro necessário para a proteção social. Em 2015, as multinacionais transferiram aproximadamente 40% de seus lucros para paraísos fiscais, enquanto os tipos de impostos corporativos em todo o mundo caíram, em média, de 40,38%, em 1980, para 24,18%, em 2019.
A pandemia, por sua vez, ressalta por sua parte o Panorama Fiscal da CEPAL, expôs deficiências nos sistemas de proteção social, tanto no mercado de trabalho, como nos sistemas de seguridade social e na limitada provisão crucial de bens e serviços públicos de alta qualidade.
Portanto, "a América Latina deve avançar em direção aos Estados de bem-estar social que garantam melhores condições de vida a todos e forneçam bases sólidas para o desenvolvimento sustentável, reduzindo a desigualdade...”, enfatiza.
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Erradicar a pobreza: do sonho ao pesadelo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU